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CARLA CLOQUE
24 de Outubro, 2019
Entrevistadores: Pamela Soares Jardim e Wagner Previtali
Entrevista com Carla Cloque, Mulher, 36 anos, Lésbica, Coordenadora de Festas GLS do 2003 até 2016.
Carla Cloque: About Us
Carla Cloque: Music Player
Pâmela: Boa noite, Carla.
Carla: Boa noite, Pâmela.
Pâmela: Essa entrevista é relacionada ao projeto de pesquisa da Unipampa, Memória LGBT Bagé e a gente tem como objetivo nessa pesquisa trazer memórias que vão ser resgatadas da cidade da comunidade LGBT aqui em Bagé.
Carla: Sim
Pâmela: Tá. Eu gostaria que tu falasse teu nome completo e tua idade.
Carla: Meu nome completo é Carla Cloque e eu tenho trinta e cinco anos. (risos)
Pâmela: Como é que é a tua relação com a cidade de Bagé?
Carla: Eu acho que é uma relação boa, assim... eu tive fora por um período de sete meses, fazendo um curso fora, mas retornei pra cá porque aqui é o lugar onde eu nasci, eu cresci, eu conheço todo mundo e me identifico muito com essa cidade que mesmo sendo uma cidade uma cidade conservadora né… que a gente sabe que a gente vive num lugar bem conservador, é bem complicado em relação a isso aí, mas é a cidade que eu escolhi pra viver hoje e, hoje a minha vida é aqui, mais pra frente eu não sei como é que vai ser, mas a princípio é aqui.
Pâmela: Uhum… Qual foi o outro local pra onde tu foi?
Carla: Eu fui pra Pelotas, fiz um curso de sete meses lá e agora retornei pra trabalhar e fazer faculdade... mas enfim, pra morar né…
Pâmela: Sim… e qual é o curso de faculdade que tu faz aqui?
Carla: Aqui é tecnologia em gastronomia… fiz o curso de cozinheira no SENAC em Pelotas e agora eu tô na Urcamp fazendo esse superior e já to quase me formando.
Pâmela: E qual a tua primeira memória LGBT aqui na cidade?
Carla: Minha primeira memória?... eu acho que foi uma festa… uma festa que eu fui da Rita, que era professora de Educação Física e ela fazia festa… A primeira pessoa, eu acho, que fez festa em Bagé, que eu lembre né, na minha época né, que daí já tem gente mais velha que eu que consegue lembrar melhor, tipo, de quando eu era guria assim, tinha 17/18 anos, eu me lembro da festa da Rita, depois disso aí, depois dessa festa dela a gente começou o projeto e teve planos de organizar mais festas também… mas eu acho que foi a minha primeira memória assim, que eu tenho de algum movimento assim, porque antes era tudo muito velado, muito tapado assim, né, as pessoas tinham e tem ainda preconceito, mas antes era bem pior né… hoje a gente tá vivendo em uma sociedade, digamos mais democrática um pouco.
Pâmela: Uhum, e tu lembra mais ou menos quando foi essas festas? E foi a partir dessa festa que tu foi pensar nas tuas festas também?
Carla: Sim, sim… Deve ter sido em 2001 ou 2002 mais ou menos e em 2003 eu comecei a fazer… a organizar né na verdade.
Pâmela: E como foi esse processo de começar a fazer festas LGBT aqui?
Carla: Ah, foi tranquilo assim… claro que no início a gente não tinha muita prática, foi eu e mais duas amigas minhas que começamos… ã… a gente foi… foi aprendendo assim com os anos e foi… ã… fazendo contato com as pessoas também.. ã… antigamente a gente panfletava, nem tinha esses meios de comunicação que hoje tem que são as redes sociais e tal, então era mais complicado de fazer uma divulgação, então a gente tinha que ir pra rua, boca a boca, conversar com as pessoas, a gente tinha um time de futebol, e aí era mais fácil de divulgar, então foi assim que a gente começou.
Pâmela: E, como é que… quais foram as dificuldades e também as facilidades que tu encontrou nesse... nessas festas, pra fazer as festas?
Carla: Ah, dificuldade sempre foi em relação a… a patrocínio mesmo, a gente tinha que muitas vezes tirar do bolso pra conseguir organizar, muitas vezes, muitas festas que a gente organizou não teve lucro, foi só pra pagar as despesas mesmo né, então acho que isso aí sempre foi uma coisa que dificultou bastante, é… as nossas festas, porque tu vê, a festa…ã… na festa hétero mesmo, sempre tem patrocínio né… é muito mais fácil de conseguir, pra fazer um evento também é muito mais fácil também de ter patrocínio e nesse meio não tinha como tu chegar e pedir patrocínio pra… pra… vamos supor uma marca, uma loja, seja o que fosse, não tinha como, porque as pessoas sempre foram conservadoras em relação a isso, então era complicado né. Essa foi uma dificuldade que eu encontrei, e, eu acho que, qual foi a outra pergunta?
Pâmela: As facilidades?
Carla: As facilidades?... ah, eu acho que… era fácil porque a gente conhecia bastante gente nesse meio e as pessoas eram bastante curiosas também, e a gente conseguia agregar bastante público as festas também.
Pâmela: Quanto tempo durou tuas festas? De 2003 até...?
Carla: Desde 2003… 2003 eu comecei com duas amigas, depois, acho que com o passar do tempo, a gente se separou, cada uma seguiu seu rumo sozinha. Ã… devo ter ficado uns 15 anos mais ou menos… mais ou menos, que eu recordo que a última festa que eu fiz acho que foi em 2016… não, 2017… 2017 deve ter sido a última festa que eu fiz, mas já faz 2 anos que eu to parada né… mais ou menos isso aí, 15/16 anos que eu organizei a primeira festa.
Pâmela: Nessas festas, teve um momento que tu fez as festas junto com a Super Afim aqui em Bagé, como é que foi esse movimento junto com outra festa LGBT?
Carla: É que na verdade a gente começou junto né, tanto eu, quanto a Pinguim, a Querlen né, a gente começou junto… e ã… as primeiras festas que a gente fez, eu tinha como parceiras a Natalia e a Pinguim, então eu comecei com elas e aí depois a Pinguim acho que foi pra Porto Alegre, fez umas festas lá e voltou, e aí ela criou uma marca pra ela, eu criei uma marca pra mim, depois a gente seguiu carreira solo, separou e depois a gente voltou de novo e hoje cada uma segue seu caminho né, não sei se ela continua fazendo festas…
Pâmela: Naquela época tinha a Super Afim, a Paradise e a Mix, em 2012, se eu não me engano…
Carla: Deve ter sido, aí já é outra época que, na verdade, quando a gente começou, em 2003 era só nós, era só essa produção, era só a CPN produções, aí eu acho que em 2011/ 2012 começou a aparecer outras festas… teve várias inclusive, teve umas que foram uma vez só, mas teve outras que duraram mais tempo também e agora tem né… eu acho que a única que ficou foi a Blackout.
Pâmela: Tu acha que tinha mais visibilidade as festas LGBT aqui em Bagé, do que tem agora, do que quando tu começou, depois com o passar do tempo também?
Carla: Ah, eu acho que hoje em dia mistura muito o público né… Hoje em dia não é mais um GLS como a gente chamava antigamente, que era só Gays, Lésbicas e Simpatizantes… porque o simpatizantes sempre entrou como amigos próximos, família, etc… e hoje é um público bem aberto assim né, pessoal universitário, que não tem preconceito e tal, então acho que hoje o público é bem maior do que o público de alguns anos atrás, hoje as pessoas têm cabeça mais aberta, tem outra criação, vive uma geração diferente do que a gente viveu em 2000 e poucos, foi meados de 95/96 quando começou minha adolescência, então hoje é tudo completamente diferente, hoje o público é bem maior do que a gente conseguia ter nas festas que a gente fazia.
Pâmela: E na tua vida particular, como é que é tua relação com a tua família?
Carla: Sempre foi tranquila… Eu me assumi muito cedo, eu tinha 13 anos quando me assumi gay pra minha família… tenho três irmãos, tenho uma irmã e dois irmãos, somos quatro. Meu pai faleceu em 93, então eu tinha nove anos, eu era muito nova, eu acho que ele nem soube né, nem devia saber que era essa minha decisão, até porque quando eu me assumi ele já era morto, eu era muito pequena também né pra falar sobre isso, talvez até não entendesse, tava naquela função de descoberta da sexualidade e tal. Mas a partir de que eu me assumi pra minha família, foi bem tranquilo, as pessoas respeitaram minha decisão e enfim, eu vivo tranquilamente.
Pâmela: E tu costumava ter amigos LGBT desde que tu te assumiu?
Carla: Eu sempre fui uma pessoa de muito, assim, de fácil acesso, sabe? que se dá com todo mundo, que conversa com todo, então eu tinha amigos LGBT, tinha amigos héteros, tudo que é tipo, todas as pessoas que conversavam comigo eu fazia amizade, sou bem fácil de conversar (risos).
Pâmela: E tinha ao teu redor pessoas mais velhas LGBTs?
Carla: Tinha, tinha… eu já conhecia algumas pessoas que eram mais velhas que eu, até porque a gente entrou no meio muito guri assim né, mas tinha bastante gente já que tinha referência assim por ser gay e tal.
Pâmela: E como é que tu percebia essas pessoas?
Carla: Ah eu acho que era a maioria pela forma de vestir né, antigamente a gente… hoje em dia não, hoje em dia todo mundo se veste como quer mas antigamente, eu acho que, até pra identificação de quem era gay ou não, a gente se identificava muito pela forma de se vestir… As meninas eram sempre muito masculinizadas assim, a gente tentava se vestir mais assim, porque acreditava que a aparência masculina fosse o fundamental pra conseguir namorar né, antigamente né, hoje é tudo completamente diferente, mas eu acho que era assim que a gente se identificava.
Pâmela: E como é que tu percebe essa diferença do antes e do agora em ti mesma?
Carla: Ah, eu acho que o tempo faz a gente mudar, mas… não sei te dizer, não sei te explicar assim… hoje eu vivo uma vida mais normal, não tem aquele preconceito tão forte como tinha antes, hoje eu consigo sair na rua.. antigamente a gente saía e sofria muito preconceito, escutava muita piadinha, brigava, tinha umas coisas que até, muitas vezes, a gente se arrepende olhando pro passado, mas, assim bem tranquilo em relação a isso aí.
Wagner: Tu falou da festa da Rita, que tu começou a sair… tu lembra de outras festas que tu tenha ouvido falar que era aberta para um público mais diverso, mais LGBT?
Carla: Não, nessa época não, nessa época era só a festa da Rita. E foi esporadicamente assim, ela fez umas duas, três festas e daí a gente já começou a fazer, a se organizar, eu acho que ela parou de fazer festas.
Wagner: O que que tu pensava do público assim, a primeira vez que tu saiu em uma festa?
Carla: Em uma festa hétero?
Wagner: Não, a festa LGBT.
Carla: Ah, eu achei que era legal, lá a gente conseguia se sentir à vontade né, não era um lugar que tu ia e sofria preconceito, porque as festas hétero sempre tiveram problemas quando a gente ía, porque não podia beijar, não podia pegar na mão, não podia ir no banheiro junto, esse tipo de coisa. Porque antigamente não tinha né, pra ti ficar com uma guria dentro de uma festa hétero, tu tinha que ir no banheiro (risos) era bem assim e, hoje é completamente diferente, bá… hoje a gente vive em outra época… As guriazinhas que eu digo de 15/16/17 anos hoje tem a liberdade que a gente nunca teve na vida. É muito mais fácil e acessível pra ti conseguir te relacionar nesse meio, né… eu acho que o tempo fez com que isso mudasse também né, eu acho que a mente, a mentalidade das pessoas abriram em relação a isso aí, isso aí foi muito importante, muito importante mesmo.
Pâmela: E aqui em Bagé, além das festas, tu percebe também essa diferença do que era antes, que era mais preconceituoso, para o que é agora? Que tá mudando também, tu percebe isso?
Carla: Ah, com certeza! Com certeza… hoje é mais tranquilo, eu vejo, eu analiso muito assim, eu sou uma pessoa que faço muita análise, quando eu tô na rua e vejo ou vou pra outro lugar, tipo, pra outra cidade, eu noto que os casais andam e, os casais LGBTs andam na rua e ninguém olha, ninguém fala e aqui eu comecei a reparar pra ver qual é a atitude que as pessoas teriam vendo aquilo porque pra eles, muita gente ainda acha que é uma agressão né… que não precisava se expor e tal, é um preconceito mais mascarado assim né, e aí eu comecei a analisar e vi também que eu acho que o pessoal já abriu a cabeça pra isso aí e hoje eu vejo com tranquilidade assim os casais passando, andando de mão, saindo nas festas e é tudo muito natural perto do que já foi um dia, então é bem interessante a evolução assim.
Carla Cloque: Text
Pâmela: E tu teve 7 meses em Pelotas, fazendo outro curso… como é que tu percebeu essa diferença entre Pelotas e aqui, em relação a comunidade LGBT? Tu chegou a perceber?
Carla: Sim, sim. Lá sempre foi muito… Como a gente é uma cidade de fronteira, eu acho que as pessoas são mais preconceituosas ainda, então acho que isso aí influencia bastante, cidade de aposentado assim, de pessoas mais velhas né… então, qualquer lugar que tu ia antes tu percebia a diferença, tanto que a gente ia pra Pelotas pra fazer festa lá, conhecer gente, ir em bares, coisas que aqui ainda não tinha né, tinha só a nossa festa… nosso ponto de encontro eram nas festas e no militão quando tinha os campeonatos de futsal, tinha citadino, todo mundo jogava, tinha uns seis, sete times, hoje eu nem sei a quantidade, eu já to meio afastada assim né dessa função de LGBT, de coisa… acho que o último movimento que eu participei foi a Parada que eu organizei né, eu e os guris organizamos, e acho que foi o último contato assim que eu tive assim com o pessoal… depois eu segui minha vida, fui fazer o curso, decidi fazer faculdade e tal, hoje tenho uma filha, tenho minha família, então já saí fora desse mundo.
Pâmela: Quando tu fez festa, tu chegou a fazer em Pelotas também, as mesmas que tu fazia aqui?
Carla: Não, não. Eu ia pra lá pra me divertir, não era pra… eu fazia festa, não era organizar festa… era fazer festa mesmo, era aproveitar (risos). Coisa que aqui a gente não conseguia fazer porque tinha função de organização né, era trabalho.
Pâmela: Sim, e como é que tu percebia a diferença dessas festas lá e das festas aqui? Não sei se tu chegou a ir em alguma festa aqui só pra se divertir ou tu só organizava festas…
Carla: Sim, sim. Não, não, depois quando surgiram outras festas lá em 2011/2012 que eu comecei a sair assim aqui em Bagé, pra participar de outras festas, porque se não era só fora assim, tinha que ir pra Pelotas ou pra Porto Alegre ou outro lugar que tivesse festa, porque se não era só, não conseguia aproveitar, porque também não tinha outra opção né, só tinha opção hétero e não era o que a gente queria, a gente queria uma festa que também frequentasse um público que nem eram as nossas né.
Pâmela: E essas festas eram LGBT? Essas que tu participava fora?
Carla: Sim
Pâmela: E como é que tu percebia essa diferença das festas fora daqui, em cidades maiores, do que aqui?
Carla: Era completamente diferente, o público era maior, a gente vive em uma cidade que tem 120 mil habitantes… não é nada comparado com Pelotas, que eu acho que tem 500 mil habitantes, 300 mil moram só no Fragata, então tem um público bem maior, e também com a função das federais, da federal lá, vem muita gente de fora, então interage assim, como é que eu vou te dizer, as culturas né, são diferentes e agem diferentes. Era até estranho chegar lá e, tipo Porto Alegre que as pessoas se vestiam diferente da gente, era muito estranho! Pensava “nossa, por que eles se vestem assim?” só que a gente parecia que era das grotas sabe (risos), tu te sentia assim em uma cidade grande, e é porque, a população é bem maior né, é outro tipo de alternativa.
Pâmela: E tu chegou a organizar a Parada aqui… qual foi a parada?
Carla: A primeira parada.
Pâmela: E como é que foi organizar esse evento?
Carla: Na verdade a gente criou uma comissão… na verdade o que aconteceu foi que eu recebi um convite já em cima da hora do pessoal que tava organizando e eles estavam meio sem ideias, sem alternativas, daí eles me pediram ajuda e eu assumi e eles deixaram meio que pra mim assim, largaram a bomba na minha mão, aí eu tive que resolver, eu consegui alguma coisa, tipo, o som, eu consegui a concha acústica lá, a praça esporte… eles ajudavam na divulgação e na parte de organização mesmo quem ajudou fui eu. Foi muito legal assim, foi muito satisfatório ver a quantidade de gente que a gente conseguiu reunir em um evento pequeno, que teve pouca divulgação, e não teve muitas atrações, tudo que a gente conseguiu foi gente que se dispusesse a ir e não cobrassem né, as apresentações, rodas de conversa e tal, e foi super legal, foi super gratificante participar desse evento.
Pâmela: Tu chegou a notar alguma diferença da primeira parada pras outras? Não sei se tu chegou a participar das outras…
Carla: Eu não fui na segunda e na terceira, não sei se houve uma terceira, mas eu ouvi comentários de que não tinha muita gente, que o pessoal não se mobilizou muito pra ir, não entendi o que aconteceu na parada deles.
Pâmela: Voltando agora a tua vida particular, tu te assumiu quando ainda era nova, e os teus amigos? como é que foi tua relação com os teus amigos quando tu te assumiu?
Carla: É, foi como eu te disse né, quando eu me assumi eu tinha 12/13 anos, eu era ainda novinha, mas os amigos de infância que eu fiz aceitaram numa boa, foi bem tranquilo, teve gente que eu acho que começou a se abrir mais comigo e me aceitar assim, mais como amiga, depois que eu me assumi, daí foi bem tranquilo em relação a isso. Claro que a gente sofre preconceito sempre né, mesmo não querendo, acaba sofrendo preconceito às vezes dentro da própria família… dentro da minha família não, mas isso aí acontece com outras pessoas, enfim, mas assim foi bem tranquilo em relação aos meus amigos, continuo, tem amigos que eu trago até hoje, que são da mesma época.
Pâmela: E como é que foi o teu processo de autoaceitação?
Carla: Foi tranquilo. No início, como a gente vivia em uma sociedade muito preconceituosa, eu não queria aceitar né… no fundo eu não aceitava. Depois que eu decidi que era aquilo que eu queria, tive namorados homens, e notei a diferença, porque eu precisa experimentar pra ter certeza de que era aquilo mesmo que eu queria, e eu acho que depois disso aí, foi bem tranquilo.
Pâmela: E agora, hoje em dia, tu é casada e têm uma filha. Como é que tu percebe a sociedade em relação a tua família?
Carla: Eu acho que eu deixei de dar bola pra isso, sabe… depois que tu tem filho é tudo completamente diferente, tu nem percebe as pessoas na volta de tanto amor que tu sente, sabe, pela tua família, tu nem olha se as pessoas estão olhando, pra saber se as pessoas estão tendo preconceito, nunca notei nada assim… tenho mais amigos hoje, as pessoas que eu conheço gostam da nossa família e até hoje eu não sofri nenhum tipo de preconceito, é bem tranquilo.
Pâmela: E como é que tu relaciona tudo, em um geral assim? Tu pensa que tuas festas te ajudaram no teu processo de autoaceitação apesar de tu ter te assumido bem mais cedo? Tu acha que isso te ajudou a perceber a comunidade LGBT?
Carla: Eu acho que sim, acho que muito . Hoje, como eu te disse é tudo diferente né, e em outras épocas, a gente vai analisando, o processo vai mudando, os tempos vão mudando e as pessoas vão mudando e eu acho que tudo mudou daquilo que era quando a gente começou a fazer festas. A primeira festa que eu fiz… hoje é tudo muito mais aberto, acessível, mais fácil e acho que eu mudei também, a gente vai se adaptando com… esse negócio de gênero eu não entendia, a gente vive num mundo onde que tu vive a mesma situação só que tu não entende… não entende porque a gente não estuda, entendeu.. hoje tem várias explicações sobre isso aí, e eu acho que isso aí foi importante pro desenvolvimento do movimento né, para as pessoas também entenderem. É que a gente é de outra época, então fica mais difícil de entender… mas agora já ta de boa assim, já conheço o sistema, como é que funciona.
Pâmela: E como é que tu percebia a comunidade LGBT antes, em seguida que tu começou a realizar as festas, e como é que tu percebe ela agora? Tu acha que ainda existe a mesma união?
Carla: Eu acho que antigamente tinha mais amizade assim sabe? Não sei se era porque a gente andava sempre, a gente tinha uma galera, eu não sei porque hoje eu não convivo mais no meio da gurizada, antigamente a gente era mais unido, hoje eu não vejo tanto assim, mas também não sei se é porque eu não convivo mais, não to mais no meio né, ou se é porque é realmente isso que acontece.
Pâmela: E tu teve alguma figura, alguma pessoa, que tu te espelhou pra criar tua própria personalidade?
Carla: Não, eu acho que não… eu conhecia as pessoas mais velhas assim, achava estranho e tal, mas não tinha esse negócio de querer ficar parecido ou de me espelhar pra ser algo parecido… acho que eu sempre fui eu mesma, sempre tentei ser o que eu queria ser né, por isso eu acho que não ia funcionar eu me espelhar em alguém.
Pâmela: E além do preconceito aqui na cidade e/ou fora, tu percebe preconceito dentro da comunidade LGBT?
Carla: É como eu te falei né, tem gente que não estuda, tem gente que fala errado, tem gente que parece que não evolui com o passar do tempo, tem preconceito, principalmente da parte de aceitação da diversidade de gênero né, e eu acho que as pessoas ainda não entenderam, tem várias gurias que falam que não precisa se vestir como um homem pra ser “gay” entendeu? pra ficar com mulher… eu acho que isso é muito pessoal, se a pessoa quiser se vestir assim, ela se veste como ela quiser, se é desse jeito que ela se identifica, ela tem que ser dessa forma, então eu acho que tem ainda, muito preconceito dentro do movimento mesmo.
Pâmela: Em relação a esse preconceito e em relação as meninas bis… tu te identifica como lésbica?
Carla: Sim.
Pâmela: Tá, tu acha que existe preconceito das meninas lésbicas em relação as meninas bis?
Carla: Não… eu não acho que tenha… Não acho nada sobre esse sentido (risos), nunca prestei atenção
Wagner: Que lugares que tu costumava frequentar, quando mais nova, que envolvia a comunidade LGBT, e agora?
Carla: Antigamente a gente se reunia no Fox, lá embaixo era uma galera porque a maioria das gurias estudava no quinze (Justino Quintana), então lá era nosso ponto de encontro. Teve um bar também, bar Izacres, mas isso a muito tempo atrás né, sei lá, eu nem lembro o ano direito deve ter sido em 1999, que a gente também se reunia lá nesse lugar, que a dona do bar era gay, então era mais tranquilo assim pra gente conseguir frequentar, porque também tinha essa função de preconceito né…
Carla Cloque: Text
Wagner: Qual era o nome do bar?
Carla: Bar Izacres… mas faz um tempão… e hoje eu não saio mais, depois que eu casei parei… quer dizer, casar eu já estava casada, mas depois que eu tive filho tudo muda na vida da gente.
Pâmela: E como é que tu pensa no futuro da tua filha? Tu pensa se ela vai sofrer algum tipo de preconceito por ter duas mães? Tu já pensou sobre isso?
Carla: Ah, eu penso nisso todos os dias… não quero que ela passe pelo que eu já passei assim, em relação ao preconceito… mas é uma coisa natural, espontânea, às vezes até as crianças, ela ta na escolinha hoje, daqui a dois/três anos as pessoas vão perguntar porque, as crianças fazem isso né, não é por mal, eles não entendem muito isso, eles vão perguntar “cadê teu pai?” isso acontece com outros casais que eu sei que tem filho, então eu acho que em alguma circunstância vai passar por algum momento assim e a gente vai tentando explicar pra ela, tentar mostrar pra ela que isso é normal, que embora a sociedade não aceite, ou ela vai viver em uma sociedade diferente da que a gente tá vivendo agora, de repente eu não preciso falar pra ela, hoje em dia eu vou falar, mas ela não vai entender, ela vai entender quando ela passar por isso aí. Eu acho que isso aí vai acontecer, um dia vai acontecer, ai vai da educação que a gente vai dar pra ela e da maneira que ela vai reagir.
Pâmela: E tu te percebe representada dentro da comunidade LGBT? Sempre te percebeu? Te percebe agora ou te percebia mais?
Carla: Aqui em Bagé assim… tu tá falando em forma política?
Pâmela: É
Carla: Ah, não tem assim.. na verdade, eu fui candidata em 2008, foi também pra satisfazer esse público né, pra defender a causa e hoje eu não vejo alguém que tenha um pulso firme pra lutar sabe, não vejo movimento também… não sei se é porque eu to tão por fora que eu nem… não sei, eu posso estar sendo injusta, mas eu não vejo nenhum movimento que eu veja e diga “ah, esse me representa!” nem política, nem estudantil, nem nada.
Pâmela: Quando tu te candidatou, tu percebeu alguma dificuldade? além da política assim, algum preconceito por tu ser lésbica?
Carla: Não, não. Foi tranquilo porque uma das plataformas do governo era justamente incentivar no futebol e alguma coisa nesse sentido, que hoje eu não me recordo muito bem. Mas não lembro de ter sofrido algum tipo de preconceito nessa época.
Wagner: Como é que era essa questão com o futebol e a tua identidade como lésbica? tinha um atravessamento nisso na época?
Carla: Tinha uma identificação assim de que toda guria que jogava era gay, era lésbica. Mesmo que fosse Bi. Que na época a gente não chamava de bi, chamava de machorra, imagina que horror. Uma coisa que, hoje em dia, é um termo que a gente não usa, só as pessoas mais antigas que falam esse tipo de coisa né. Mas as pessoas tinham essa idéia de que todo mundo que jogava era gay, e na verdade não era, a gente tinha gente que jogava porque gostava, porque gostava de praticar esporte, enfim, se identificava com aquilo ali.
Wagner: Tu falou dessa questão política e falou aqui em Bagé… E como é que tu pensa isso no Brasil? De representação, de movimentos?
Carla: O Brasil ta muito complicado! O cenário político tá muito complicado. Eu tento até não conversar muito sobre isso porque é uma coisa que me irrita bastante sabe, em relação a política, então…
Wagner: Mas e antigamente, tu lembra de marcos assim, acontecimentos que foram importantes?
Carla: Pra comunidade?
Wagner: Pra ti também.
Carla: Não lembro… talvez quando eles liberaram o casamento… isso aí foi muito importante, mas ultimamente não, só tem coisa negativa né sobre a política, então tá tudo meio ruim, meio pesado, meio complicado, que eu acho que ninguém levanta mais bandeira nenhuma.
Pâmela: E mesmo eles tendo liberado casamento, tu percebeu um número significativo nos casamentos gays?
Carla: É, eu acho que sim. Acho que o pessoal começou a criar mais coragem pra enfrentar né. Eu acho que depois disso aí teve um aumento bem significativo.
Pâmela: Tu tem alguma religião?
Carla: Não… sou católica (risos) sou batizada na igreja católica, então… (risos)
Pâmela: Mas tu não frequenta?
Carla: Não não
Pâmela: E como é que tu faz parte… qual a tua relação com a comunidade LGBT? Agora tu disse que está mais em casa e tal, mas como é que tu percebeu a tua luta com a comunidade?
Carla: Eu acho que foi meio “chover no molhado” pra ser sincera. Porque a gente tentou fazer um movimento legal, onde as pessoas participassem e tal, mas eu acho que não essa a ideia que a gente pensou, acho que o pessoal é desunido em relação a isso aí… tá todo mundo vivendo sua vida e esquecendo de todo mundo sabe. É como eu falei, não tem mais ninguém levantando bandeira nenhuma.
Pâmela: E além da Blackout, tu percebe algum outro espaço que seja aberto a comunidade LGBT? Mesmo tu não estando tão presente agora…
Carla: Eu vejo na internet. Vi que dois meninos estavam em uma festa hétero né e foram retirados pra fora pelo segurança porque estavam se beijando ou de mão, uma coisa assim... não sei de nenhum lugar, que não seja a blackout né, que o público LGBT frequente.
Pâmela: E aqui em Bagé, que lugares ou redes tinham para ti poder explorar a tua sexualidade, conhecer pessoas novas, poder se envolver com as pessoas?
Carla: Olha, naquela época não tinha muita coisa. Não tinha rede social, não tinha nada… acho que a gente conhecia as pessoas assim só jogando futebol, que tinha bastante amigo e viajava pra fora e conhecia bastante gente… acho que era esse o meio, depois telefone celular né, que era por SMS e depois sim começou as redes sociais, começou o Orkut, começou o Facebook, Instagram, mas naquela época não tinha, era conversa mesmo, era ao vivo ou por telefone… Tu conhecia alguém, que conhecia alguém, que te apresentava alguém (risos), era assim que a gente começava a vida sexual da gente antigamente.
Pâmela: E aqui em Bagé, tu chegou a frequentar algum espaço LGBT além de festas, como praças?
Carla: Sim sim. A gente sempre foi pra Praça Esporte, a gente se reunia bastante de grupo lá, se achava bastante lá, porque todo mundo frequentava né, todo público LGBT frequentava lá, acho que era o local que a gente se achava.
Pâmela: E hoje em dia tu ainda percebe a praça esporte assim?
Carla: Não, hoje em dia não
Pâmela: Tem alguma praça que tu perceba?
Carla: Não, eu não tenho notado o público LGBT em lugares assim, só festa… hoje o pessoal se reúnem em 1 ou 2 e se encontram na praça, mas não é aquele murmurinho como tinha antigamente.
Pâmela: Tá bom então, Carla. A gente agradece tua participação, muito obrigada.
Wagner: Muito obrigada.
Carla: Eu que agradeço.
Carla Cloque: Text
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