Pâmela: Boa noite, Carla.
Carla: Boa noite, Pâmela.
Pâmela: Essa entrevista é relacionada ao projeto de pesquisa da Unipampa, Memória LGBT Bagé e a gente tem como objetivo nessa pesquisa trazer memórias que vão ser resgatadas da cidade da comunidade LGBT aqui em Bagé.
Carla: Sim
Pâmela: Tá. Eu gostaria que tu falasse teu nome completo e tua idade.
Carla: Meu nome completo é Carla Cloque e eu tenho trinta e cinco anos. (risos)
Pâmela: Como é que é a tua relação com a cidade de Bagé?
Carla: Eu acho que é uma relação boa, assim... eu tive fora por um período de sete meses, fazendo um curso fora, mas retornei pra cá porque aqui é o lugar onde eu nasci, eu cresci, eu conheço todo mundo e me identifico muito com essa cidade que mesmo sendo uma cidade uma cidade conservadora né… que a gente sabe que a gente vive num lugar bem conservador, é bem complicado em relação a isso aí, mas é a cidade que eu escolhi pra viver hoje e, hoje a minha vida é aqui, mais pra frente eu não sei como é que vai ser, mas a princípio é aqui.
Pâmela: Uhum… Qual foi o outro local pra onde tu foi?
Carla: Eu fui pra Pelotas, fiz um curso de sete meses lá e agora retornei pra trabalhar e fazer faculdade... mas enfim, pra morar né…
Pâmela: Sim… e qual é o curso de faculdade que tu faz aqui?
Carla: Aqui é tecnologia em gastronomia… fiz o curso de cozinheira no SENAC em Pelotas e agora eu tô na Urcamp fazendo esse superior e já to quase me formando.
Pâmela: E qual a tua primeira memória LGBT aqui na cidade?
Carla: Minha primeira memória?... eu acho que foi uma festa… uma festa que eu fui da Rita, que era professora de Educação Física e ela fazia festa… A primeira pessoa, eu acho, que fez festa em Bagé, que eu lembre né, na minha época né, que daí já tem gente mais velha que eu que consegue lembrar melhor, tipo, de quando eu era guria assim, tinha 17/18 anos, eu me lembro da festa da Rita, depois disso aí, depois dessa festa dela a gente começou o projeto e teve planos de organizar mais festas também… mas eu acho que foi a minha primeira memória assim, que eu tenho de algum movimento assim, porque antes era tudo muito velado, muito tapado assim, né, as pessoas tinham e tem ainda preconceito, mas antes era bem pior né… hoje a gente tá vivendo em uma sociedade, digamos mais democrática um pouco.
Pâmela: Uhum, e tu lembra mais ou menos quando foi essas festas? E foi a partir dessa festa que tu foi pensar nas tuas festas também?
Carla: Sim, sim… Deve ter sido em 2001 ou 2002 mais ou menos e em 2003 eu comecei a fazer… a organizar né na verdade.
Pâmela: E como foi esse processo de começar a fazer festas LGBT aqui?
Carla: Ah, foi tranquilo assim… claro que no início a gente não tinha muita prática, foi eu e mais duas amigas minhas que começamos… ã… a gente foi… foi aprendendo assim com os anos e foi… ã… fazendo contato com as pessoas também.. ã… antigamente a gente panfletava, nem tinha esses meios de comunicação que hoje tem que são as redes sociais e tal, então era mais complicado de fazer uma divulgação, então a gente tinha que ir pra rua, boca a boca, conversar com as pessoas, a gente tinha um time de futebol, e aí era mais fácil de divulgar, então foi assim que a gente começou.
Pâmela: E, como é que… quais foram as dificuldades e também as facilidades que tu encontrou nesse... nessas festas, pra fazer as festas?
Carla: Ah, dificuldade sempre foi em relação a… a patrocínio mesmo, a gente tinha que muitas vezes tirar do bolso pra conseguir organizar, muitas vezes, muitas festas que a gente organizou não teve lucro, foi só pra pagar as despesas mesmo né, então acho que isso aí sempre foi uma coisa que dificultou bastante, é… as nossas festas, porque tu vê, a festa…ã… na festa hétero mesmo, sempre tem patrocínio né… é muito mais fácil de conseguir, pra fazer um evento também é muito mais fácil também de ter patrocínio e nesse meio não tinha como tu chegar e pedir patrocínio pra… pra… vamos supor uma marca, uma loja, seja o que fosse, não tinha como, porque as pessoas sempre foram conservadoras em relação a isso, então era complicado né. Essa foi uma dificuldade que eu encontrei, e, eu acho que, qual foi a outra pergunta?
Pâmela: As facilidades?
Carla: As facilidades?... ah, eu acho que… era fácil porque a gente conhecia bastante gente nesse meio e as pessoas eram bastante curiosas também, e a gente conseguia agregar bastante público as festas também.
Pâmela: Quanto tempo durou tuas festas? De 2003 até...?
Carla: Desde 2003… 2003 eu comecei com duas amigas, depois, acho que com o passar do tempo, a gente se separou, cada uma seguiu seu rumo sozinha. Ã… devo ter ficado uns 15 anos mais ou menos… mais ou menos, que eu recordo que a última festa que eu fiz acho que foi em 2016… não, 2017… 2017 deve ter sido a última festa que eu fiz, mas já faz 2 anos que eu to parada né… mais ou menos isso aí, 15/16 anos que eu organizei a primeira festa.
Pâmela: Nessas festas, teve um momento que tu fez as festas junto com a Super Afim aqui em Bagé, como é que foi esse movimento junto com outra festa LGBT?
Carla: É que na verdade a gente começou junto né, tanto eu, quanto a Pinguim, a Querlen né, a gente começou junto… e ã… as primeiras festas que a gente fez, eu tinha como parceiras a Natalia e a Pinguim, então eu comecei com elas e aí depois a Pinguim acho que foi pra Porto Alegre, fez umas festas lá e voltou, e aí ela criou uma marca pra ela, eu criei uma marca pra mim, depois a gente seguiu carreira solo, separou e depois a gente voltou de novo e hoje cada uma segue seu caminho né, não sei se ela continua fazendo festas…
Pâmela: Naquela época tinha a Super Afim, a Paradise e a Mix, em 2012, se eu não me engano…
Carla: Deve ter sido, aí já é outra época que, na verdade, quando a gente começou, em 2003 era só nós, era só essa produção, era só a CPN produções, aí eu acho que em 2011/ 2012 começou a aparecer outras festas… teve várias inclusive, teve umas que foram uma vez só, mas teve outras que duraram mais tempo também e agora tem né… eu acho que a única que ficou foi a Blackout.
Pâmela: Tu acha que tinha mais visibilidade as festas LGBT aqui em Bagé, do que tem agora, do que quando tu começou, depois com o passar do tempo também?
Carla: Ah, eu acho que hoje em dia mistura muito o público né… Hoje em dia não é mais um GLS como a gente chamava antigamente, que era só Gays, Lésbicas e Simpatizantes… porque o simpatizantes sempre entrou como amigos próximos, família, etc… e hoje é um público bem aberto assim né, pessoal universitário, que não tem preconceito e tal, então acho que hoje o público é bem maior do que o público de alguns anos atrás, hoje as pessoas têm cabeça mais aberta, tem outra criação, vive uma geração diferente do que a gente viveu em 2000 e poucos, foi meados de 95/96 quando começou minha adolescência, então hoje é tudo completamente diferente, hoje o público é bem maior do que a gente conseguia ter nas festas que a gente fazia.
Pâmela: E na tua vida particular, como é que é tua relação com a tua família?
Carla: Sempre foi tranquila… Eu me assumi muito cedo, eu tinha 13 anos quando me assumi gay pra minha família… tenho três irmãos, tenho uma irmã e dois irmãos, somos quatro. Meu pai faleceu em 93, então eu tinha nove anos, eu era muito nova, eu acho que ele nem soube né, nem devia saber que era essa minha decisão, até porque quando eu me assumi ele já era morto, eu era muito pequena também né pra falar sobre isso, talvez até não entendesse, tava naquela função de descoberta da sexualidade e tal. Mas a partir de que eu me assumi pra minha família, foi bem tranquilo, as pessoas respeitaram minha decisão e enfim, eu vivo tranquilamente.
Pâmela: E tu costumava ter amigos LGBT desde que tu te assumiu?
Carla: Eu sempre fui uma pessoa de muito, assim, de fácil acesso, sabe? que se dá com todo mundo, que conversa com todo, então eu tinha amigos LGBT, tinha amigos héteros, tudo que é tipo, todas as pessoas que conversavam comigo eu fazia amizade, sou bem fácil de conversar (risos).
Pâmela: E tinha ao teu redor pessoas mais velhas LGBTs?
Carla: Tinha, tinha… eu já conhecia algumas pessoas que eram mais velhas que eu, até porque a gente entrou no meio muito guri assim né, mas tinha bastante gente já que tinha referência assim por ser gay e tal.
Pâmela: E como é que tu percebia essas pessoas?
Carla: Ah eu acho que era a maioria pela forma de vestir né, antigamente a gente… hoje em dia não, hoje em dia todo mundo se veste como quer mas antigamente, eu acho que, até pra identificação de quem era gay ou não, a gente se identificava muito pela forma de se vestir… As meninas eram sempre muito masculinizadas assim, a gente tentava se vestir mais assim, porque acreditava que a aparência masculina fosse o fundamental pra conseguir namorar né, antigamente né, hoje é tudo completamente diferente, mas eu acho que era assim que a gente se identificava.
Pâmela: E como é que tu percebe essa diferença do antes e do agora em ti mesma?
Carla: Ah, eu acho que o tempo faz a gente mudar, mas… não sei te dizer, não sei te explicar assim… hoje eu vivo uma vida mais normal, não tem aquele preconceito tão forte como tinha antes, hoje eu consigo sair na rua.. antigamente a gente saía e sofria muito preconceito, escutava muita piadinha, brigava, tinha umas coisas que até, muitas vezes, a gente se arrepende olhando pro passado, mas, assim bem tranquilo em relação a isso aí.
Wagner: Tu falou da festa da Rita, que tu começou a sair… tu lembra de outras festas que tu tenha ouvido falar que era aberta para um público mais diverso, mais LGBT?
Carla: Não, nessa época não, nessa época era só a festa da Rita. E foi esporadicamente assim, ela fez umas duas, três festas e daí a gente já começou a fazer, a se organizar, eu acho que ela parou de fazer festas.
Wagner: O que que tu pensava do público assim, a primeira vez que tu saiu em uma festa?
Carla: Em uma festa hétero?
Wagner: Não, a festa LGBT.
Carla: Ah, eu achei que era legal, lá a gente conseguia se sentir à vontade né, não era um lugar que tu ia e sofria preconceito, porque as festas hétero sempre tiveram problemas quando a gente ía, porque não podia beijar, não podia pegar na mão, não podia ir no banheiro junto, esse tipo de coisa. Porque antigamente não tinha né, pra ti ficar com uma guria dentro de uma festa hétero, tu tinha que ir no banheiro (risos) era bem assim e, hoje é completamente diferente, bá… hoje a gente vive em outra época… As guriazinhas que eu digo de 15/16/17 anos hoje tem a liberdade que a gente nunca teve na vida. É muito mais fácil e acessível pra ti conseguir te relacionar nesse meio, né… eu acho que o tempo fez com que isso mudasse também né, eu acho que a mente, a mentalidade das pessoas abriram em relação a isso aí, isso aí foi muito importante, muito importante mesmo.
Pâmela: E aqui em Bagé, além das festas, tu percebe também essa diferença do que era antes, que era mais preconceituoso, para o que é agora? Que tá mudando também, tu percebe isso?
Carla: Ah, com certeza! Com certeza… hoje é mais tranquilo, eu vejo, eu analiso muito assim, eu sou uma pessoa que faço muita análise, quando eu tô na rua e vejo ou vou pra outro lugar, tipo, pra outra cidade, eu noto que os casais andam e, os casais LGBTs andam na rua e ninguém olha, ninguém fala e aqui eu comecei a reparar pra ver qual é a atitude que as pessoas teriam vendo aquilo porque pra eles, muita gente ainda acha que é uma agressão né… que não precisava se expor e tal, é um preconceito mais mascarado assim né, e aí eu comecei a analisar e vi também que eu acho que o pessoal já abriu a cabeça pra isso aí e hoje eu vejo com tranquilidade assim os casais passando, andando de mão, saindo nas festas e é tudo muito natural perto do que já foi um dia, então é bem interessante a evolução assim.